Estávamos vivendo o início dos anos 2000, ou seja, começo do século XXI. Eu tinha uma rotina de todos os sábados: ao fim da manhã passava na Banca do Japonês, na Praia do Canto, para comprar o Jornal do Brasil. Amava ler a coluna de Danuza Leão, ela falava sobre um certo cotidiano charmoso dos sábados do Rio daquela época. Ia com minha primeira e querida neta, Júlia, pois para ela havia sempre uma publicação de interesse infantil. Ela não havia chegado ainda à idade das primeiras leituras. De lá seguíamos para um restaurante onde eu comia alguma coisa e tomava cerveja. Ela adorava saborear os pasteizinhos recheados com camarão, enquanto eu lia o jornal.
Foi assim que avistei alguns amigos que frequentavam a varanda do Restaurante Pirão, também na Praia do Canto, e então conheci seu proprietário, o simpático Hercílio, que todos sempre chamaram de Pirão. Esse apelido ele ganhou ainda nos tempos de criança, quando trabalhava com seu pai no Restaurante São Pedro, na Praia do Suá. De lá saiu, com sua enorme carga de alegria e simpatia, que raramente o abandonavam, para montar o seu próprio restaurante, em 1982. Com Júlia passei dezenas de manhãs no Pirão, viramos frequentadores habituais, até que seus afazeres de adolescente a levaram para outros programas mais adequados à nova fase.
Eu, entretanto, continuei a frequentar a animada mesa que chamávamos de diretoria, por brincadeira do Hercílio. E foi assim por quase duas décadas. Construí ali amizades sólidas, como as de Fabinho Nascimento, Paulo Erlarchere delegado Júlio Cezar. Foram tardes e tardes de sábados e domingos. Comemorava-se de tudo lá: aniversários, chegadas e partidas. Como nós brasileiros gostamos, eram amizades festivas e batizadas por boas doses de deliciosas capivodkas. Vimos casamentos começarem e terminarem em conversas que estimulavam ou consolavam. Alegria era a marca sempre presente.
No último dia 13 de março a dona morte, que um dia abraçará a todos nós, levou o nosso querido Pirão nos braços, no alto de seus 78 anos. Ele já não era mais o dono do restaurante, que lhe foi tirado de uma forma tão dura que nunca mais se recuperou do baque. Foi logo depois daquele ano de 2020, marcado pela pandemia do Corona Vírus, que tantas vidas levou e tantos negócios muito bem estabelecidos fez derreter. O grupo que ali se reunia, no entanto, foi marcado, mesmo antes do término daquela mesa dos fins de semana, por uma outra cicatriz de nossos tempos: a polarização afetiva.
A mesma tempestade que trouxe a polarização política, que inventou discursos de ódio e uma certeza da razão em pessoas que sequer falavam em política até então – as quais nunca gastaram mais do que 5 minutos diários com essa questão – semeou ódios, desavenças e constrangimentos. Amizades foram abaladas porque os até então amigos viraram autoridades dogmáticas, uns contra os outros. Não chego a dizer que muitas uniões foram desfeitas por petismos e bolsonarismos, posto que talvez fossem mesmo acabar por outras e diversas circunstâncias. Nunca saberemos.
Uma coisa, entretanto, é certa: a polarização política contaminou esses e outros grupos, ferindo-os de morte. Nenhuma amizade vale uma rivalidade política. Somente povos com a paixão exposta, como os brasileiros, com a sentimentalidade de nossa gente, se deixariam levar por razões tão pouco profundas para desfazer laços afetivos. Vários grupos de amigos e de famílias também foram vítimas desse tipo de comportamento, muitos foram contaminados até se tornarem insuportáveis.
Parece que a polarização no campo da política tende a ficar menor daqui para a frente, com o ocaso natural dos dois maiores ícones de ambos lados, Lula e Bolsonaro. A mesma dama fria que abraçou nosso amigo Pirão também abraçará esses dois personagens privilegiados da cena política brasileira contemporânea. Antes, porém, ficarão senis, ou até mesmo esquecidos por seus milhões de adoradores. Enfim, deixarão em paz as velhas amizades que um dia morreram para defender vagas ideias ou comportamentos anacrônicos.
O mesmo vento de bonança que um dia poderá trazer solução menos radical na política, dessa vez mais no eixo da compreensão, solidariedade e cooperação, talvez traga de novo a magia do entendimento, do amor e da amizade que sempre uniram essa sociedade tão extraordinária que todos nós construímos no Brasil, a despeito das enormes injustiças e desigualdades sociais.
Vou retomar meus sentimentos sobre Hercílio Pirão para encerrar esta coluna em forma de homenagem e despedida. Quero para sempre ter na lembrança a boa pessoa que era, o exemplo de um ser humano especial, que, com sua alegria e simpatia, deixou todos que com ele conviveram um pouco melhores, mais leves. Foi um homem feliz, apesar das armadilhas que a vida lhe fez, dos sustos que a saúde lhe deu e das dores que, afinal, todos temos.