Dia Mundial da Infância: como o trabalho infantil prejudica vidas

Elas deveriam estar estudando, brincando, conhecendo as novidades da vida na infância. Mas a bola de gude, as bonecas, a brincadeira de pique e amarelinha, deram lugar à enxada na roça, caixas de mercadorias nas mercearias e plantações. No dia 21 de março, comemora-se o Dia Internacional da Infância, e o ES HOJE destaca casos de pessoas que perderam a infância e foram expostos ao trabalho infantil.

Segundo a procuradora do Trabalho e titular regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), Thais Borges da Silva, no Espírito Santo, em 2024, foram identificadas 166 crianças e adolescentes alcançados em situação de trabalho infantil pelas ações fiscais, de acordo com as informações oriundas da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (Observatório do Trabalho Infantil).

Ela disse ainda que foram recebidas no Ministério Público do Trabalho (MPT-ES), no ano de 2024, 92 denúncias relacionadas à exploração do trabalho da criança e do adolescente.

Thais Borges afirmou que, de acordo com os microdados da PnadC 2022, no Brasil, dentre as ocupações mais exercidas por crianças e adolescentes, em 2022, destacam-se as de agricultura e comércio.

Trabalho desde os 8 anos

A exploração do trabalho infantil não é uma prática recente. Hoje, com 50 anos, João Rodrigues passou por essa situação. Casado, com duas filhas e vivendo em Vila Velha, na Grande Vitória, João lembra do trabalho quando tinha apenas 8 anos.

“Eu morava em Minas Gerais com meus pais e meus irmãos. Com essa idade eu acordava às 3h para ir para a roça. Lá eu tirava leite e cuidava do gado”, comenta.

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Essas são as mãos de João Rodrigues, que começou a trabalhar com 8 anos de idade.

João desabafa e fala como essa ação foi prejudicial, principalmente para os estudos. “Eu precisei sair da escola pelo cansaço. Eu não suportava a rotina. Primeiro eu acordava cedo e ia para a roça trabalhar. Na hora do almoço, saía e ia para a escola, caminhava por quilômetros. Quando voltava, não tinha descanso ou deveres de casa para entregar, eu voltava para a roça. Depois de um tempo larguei a escola e fiquei só com o trabalho”, lembra.

Ele reforça que o trabalho precoce foi necessário para ajudar no orçamento da casa. “Trabalhava para ajudar meus pais e meus irmãos”.

Atualmente conhecido como 3º ano do ensino fundamental, João Rodrigues estudou até a 2ª série, naquela época. O sonho de terminar os estudos aconteceu 40 anos depois, quando realizou o Ensino para Jovens e Adultos (Eja) de forma online. “Eu não consegui completar meus estudos e sinto que isso me prejudicou, mas o que não podemos é desistir. Consegui completar meu ensino médio”.

João quer um futuro diferente para suas filhas. “Quero que elas tenham a oportunidade de estudar corretamente, descansar – que é necessário -, brincar, fazer coisas que crianças devem fazer. Quero para elas um futuro melhor, aquilo que eu não tive”, pontuou.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) destacou que, segundo os microdados da PnadC 2022, no Brasil, o contingente e a proporção do trabalho infantil crescem com a idade. Assim, em 2022: entre as crianças de 5 a 9 anos, a população em situação de trabalho era de 132 mil; na faixa de 10 a 13 anos de idade, era de 316 mil; entre os adolescentes de 14 a 15 anos, era de 444 mil; por fim, o contingente de adolescentes de 16 a 17 anos ocupados era de 987 mil.

Trabalho na adolescência

James Brian Silva dos Santos, de 56 anos, foi um dos adolescentes que, na sua época, entrou para as estatísticas de trabalho aos 16 anos, mas sem carteira assinada.

Depois de contrair meningite aos 5 anos, James, que outrora nasceu saudável, perdeu a audição completa dos dois ouvidos. Com a dificuldade de locomoção e interação, ele entrou na escola aos 11 anos, mas com 16 começou a trabalhar na mercearia do bairro, onde ficou até se aposentar.

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Aposentado, James Brian trabalhou na mesma mercearia desde os 16 anos até se aposentar.

Único filho homem, com mais três irmãs, ele conta porquê tomou a decisão de trabalhar na adolescência. “Eu comecei a trabalhar para ajudar em casa, auxiliar minha mãe e minhas irmãs”.

Diferente de João, James se recorda que, apesar de trabalhar cedo, ele conseguia tempo para brincar. “O trabalho era perto da minha casa, eu tinha um horário fixo. Então, quando saía, ainda conseguia brincar com meus colegas”.

A carteira assinada veio três anos depois, quando estava com 19 anos. Porém, os estudos ficaram para trás. James tem dois filhos e o desejo dele é que o foco seja nos estudos e nas oportunidades para um futuro melhor.

“Quero para eles aquilo que eu não tive. Quero que eles continuem estudando e tenham uma boa profissão”.

O que é trabalho infantil? 

Assistente Social, Professora Doutora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Coordenadora do Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente (NECA/UFES), Juliana Iglesias Melim, explica que o que caracteriza um trabalho infantil é a violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes à vida, à saúde, à educação, ao brincar, ao lazer, à formação profissional e à convivência familiar.

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Foto: reprodução

Ela reforça que todas as formas de trabalho infantil são proibidas para crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade (Artigo 7º, inciso XXXIII da Constituição Federal de 1988). A única exceção é a Aprendizagem Profissional, a partir dos 14 anos (Artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente). “Art.428 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

“Nesses casos, é importante ressaltar que é vedado o trabalho noturno, insalubre, perigoso ou penoso. Também é proibido o trabalho em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento dos/as adolescentes e aqueles realizados em horários e locais que não permitam a frequência escolar (Artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente)”, esclarece.

Juliana ressalta ainda que, segundo dados do IBGE, em 2023, 1,607 milhão de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil no Brasil, o que representa 4,2% da população nessa faixa etária.

“Outro ponto que devemos considerar em qualquer abordagem sobre o trabalho infantil é o quanto essa violenta prática é funcional para a manutenção e reprodução do modo de produzir capitalista: crianças e adolescentes realizam atividades laborativas semelhantes às dos adultos, recebem menos, não possuem direitos trabalhistas e não se organizam sindicalmente. É uma forma de exploração da força de trabalho extremamente lucrativa e, por isso mesmo, bastante utilizada”, criticou.

Serra e Santa Maria  de Jetibá no topo do trabalho infantil

A titular regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), Thais Borges da Silva, disse que os últimos dados individualizados são do Prova Brasil 2017 (que podem ser visualizados no Observatório do Trabalho Infantil) e dão conta de que o município de Serra era, no Espírito Santo, o que possuía maior quantitativo de crianças e adolescentes que trabalham fora de suas residências. Ademais, quanto ao trabalho infantil rural, o município de Santa Maria de Jetibá era o que possuía o maior contingente de crianças e adolescentes com menos de 14 anos ocupados em estabelecimentos agropecuários no Estado, de acordo com o Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola 2017.

Papel da população em casos de trabalho infantil

O Ministério Público do Trabalho reforçou que a população tem um papel importante neste processo. Completou ainda que, para combater a exploração do trabalho de crianças e adolescentes, o MPT atua de maneira repressiva, através da instauração de procedimentos investigatórios e do ajuizamento de ações civis públicas com o objetivo de fazer cessar a conduta irregular e responsabilizar o explorador.

“Assim podemos dizer que também se destaca a atuação promocional do Ministério Público do Trabalho, por meio de articulação com atores sociais componentes do Fórum Estadual de Aprendizagem, Proteção ao Adolescente Trabalhador e Erradicação do Trabalho Infantil (Feapeti), para implementação de projetos voltados ao combate ao trabalho infantil e à promoção da aprendizagem profissional, como os Projetos: Além da Medida, Feira Livre de Trabalho Infantil, Políticas Públicas, MPT na Escola”, explicou Thais Borges da Silva. 

A procuradora reforçou ainda que o engajamento da sociedade no combate ao trabalho infantil é essencial. “A população pode ajudar na disseminação de informações dos riscos que o trabalho infantil traz às crianças e adolescentes, bem como evitando adquirir produtos ou serviços por eles prestados. Também pode auxiliar realizando denúncias ao suspeitar que crianças e adolescentes estejam em situação de exploração de seu trabalho”.

As denúncias podem ser feitas ao Ministério Público do Trabalho por meio do site: www.prt17.mpt.mp.br.

Em concordância, a assistente social, Juliana Iglesias Melim, relatou que a população pode e deve ajudar. “O primeiro passo é superar as ideologias que reforcem a exploração da força de trabalho de crianças e adolescentes em detrimento do seu pleno desenvolvimento físico, mental, intelectual e social”, destacou.

Ela salienta ainda que outra ação é cobrar dos órgãos competentes ações eficazes de fiscalização. “O trabalho infantil precisa ser compreendido como um problema e não como solução direcionada para as infâncias e adolescências pobres”, afirmou ela, que concluiu:

“A sociedade também deve fortalecer os movimentos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes e reivindicar do Poder Público nas esferas federal, estadual e municipal recursos públicos suficientes para a implementação e fortalecimento de políticas que tenham como finalidade prevenir e erradicar o trabalho infantil”, finalizou.

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