A MORTE DA FÊNIX: reflexões sobre o inevitável

A MORTE DA FÊNIX: reflexões sobre o inevitável

Quando recebi esse registro, aparentemente inocente, fiquei pensando muito sobre o inevitável. O seu céu de brigadeiro parece anunciar uma nova etapa. Um resgate de um espaço abandonado. Talvez a FÊNIX renascida.

Ainda na adolescência, eu li Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Um texto espetacular, mas que levei quatro dias para sair das primeiras páginas, pois, acostumado com uma literatura mais leve e cartesiana, o estilo fantástico de Garcia Marques tomou aquele adolescente desprevenido. Passadas as páginas lentas do início, outros dois dias foram suficientes pra eu ler todo o restante do livro. Simplesmente absoluto. Minha entrega foi absoluta; fui jogado dentro da saga de uma família e seus destinos.

Por que eu trago esse livro agora? Simples, pelo, muitas vezes, inevitável destino.

Uma das cenas do livro que nunca me saiu da cabeça foi a mulher sentada na varanda, em uma cadeira de balanço enquanto o tempo tomava selvagemente a sua casa. Ela era a antítese de si mesma em toda a saga. Úrsula, agora letárgica, fora uma força feminina, que criou até a sexta geração de sua família. Uma matriarca

“Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis,
e que em nenhum momento de sua vida alguém ouviu cantar,
parecia estar em todas as partes do  amanhecer até a alta noite,
sempre perseguida pelo suave sussurro de suas anáguas
rendadas. Graças a ela, o chão de terra batida, os muros de barro
sem caiar, os rústicos móveis de madeira construídos por eles
mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde era
guardada a roupa exalavam um perfume morno de alfavaca”

Mas, a saga desse livro segue um destino trágico: o marido louco amarrado em uma árvore no quintal, os três filhos perdidos para a vida. O destino atroz a que ela não podia controlar.

E esse não controlar o tempo ficou em minha mente. Úrsula, em sua cadeira, via, ou apenas sentia a inércia de seu fim de vida; o inevitável fim era um fato. A varanda e a casa eram constantemente tomadas pela hera; crescia desmesuradamente, não obstante ser aparada todos os dias. Cortava-se em um dia; no outro, ela estava lá, íntegra novamente, devorando as paredes…  e ela imóvel frente ao ocaso de seu destino…

Esta foi exatamente a imagem que me veio à cabeça sobre o destino da Casa de Freda Jardim, objeto de nossas conversas ainda no final do ano passado. A saga dessa mulher está sendo devorada pela hera do esquecimento. Qual Úrsula, Freda não pode fazer nada. Nós não podemos fazer mais nada! Seu legado foi varrido. E exatamente pelas mão que deveriam protegê-lo.

 

Se tomarmos essas duas imagens iniciais, temos o mesmo espaço (parte da casa de Freda onde seria sua FENIX, uma escola de arte); Essa segunda, durante o seu abandono e pilhagem; a primeira, um registro do processo de “higienização”. Essa limpeza na primeira imagem é a inversão do sentido da hera em Cem Anos de Solidão. Essa limpeza é o rastro da destruição. Não é o tempo que a tudo sucumbi, mas a ação de alguns que querem apagar a existência dessa mulher e artista que foi Freda Jardim

Isto de o tempo estar devorando o presente, era a imagem que eu tive, em novembro, quando vos escrevi sobre o abandono do legado de Freda Jardim. Sua casa deixada ao mato e aos vândalos que a invadiram e trocavam qualquer coisa de valor por uma pedra – queimada para um momento de êxtase… ou de mera dependência… cada peça que brilhasse como valor foi-lhe tirada, queimada. Memórias de viagens e estudos devorados pelo descaso… mas algo ainda havia lá, no meio dos escombros: a esperança, qual arqueólogos, de que poderíamos salvar um pouco dela.

Toda a vida dessa mulher artista estava abandonada por sua própria genealogia. Mas ainda restavam vestígios…

A MORTE DA FÊNIX: reflexões sobre o inevitável

 

As paredes de sua casa-ateliê foram se perdendo desde sua partida. O abandono imperava. A destruição queria cobrir com seu manto o que foi a história dessa mulher. Num rompante, atendendo a um chamado desde Porto, escrevi aquela denuncia sobre essa deserção, dessa evasão da nossa memória artística e cultural.

Foi um chamado. Amigos se movimentaram. Petições foram feitas… restava alguma esperança para os milhares de índices de Freda, que como sua fênix, esperávamos que renascesse das cinzas e voltasse a cruzar o céu de brigadeiro. Críamos que ela poderia renascer das cinzas de seu abandono… e pedimos isto à Justiça.

O triste fim de uma era

Desde o final do ano passado, eu e mais outra pessoa, muito ligada afetivamente a Freda, nos prontificamos e decidimos mover processos judiciais para preservar parte do acervo de Freda Jardim que ainda sobrevivia em meio a tanto abandono. O interventor judicial recebeu nosso pedido.  Apenas, inicialmente, pedimos para resgatar o que ainda era possível em meio a tanto silenciamento. Tesselas, pedras, livros, materiais de uma vida toda… todos espalhados, devassados, violados. Só pretendíamos inicialmente resgatar o que ainda fosse possível.

Perdemos!

A MORTE DA FÊNIX: reflexões sobre o inevitável

Essa semana passada, junto com os ventos e calores de um verão escaldante, para espanto nosso, dois amantes da nossa memória, ocasionalmente passando na porta da casa-ateliê de Freda, deram-se com o inevitável: tudo aberto novamente. Mas, dessa vez não pelos moradores em situação de rua ou pessoas em vulnerabilidade social. Maquinas e homens a serviço da higienização. Memórias inteiras jogadas em caçambas.

A MORTE DA FÊNIX: reflexões sobre o inevitável

Este está sendo o triste fim de uma fênix. De uma mulher que deu sua vida pela cultura desse país. Que se deu para a arte capixaba. Formou gerações.

Agora, apenas entulho em algum aterro.

Perde Freda.

Perde o Centro de Artes.

Perde o nosso estado mais um pedaço de sua memória!!

Serviço:

Revisão: Giuliano de Miranda

Fênix: nome de uma ave mitológica que simboliza a capacidade de se reconstruir, esse era o nome da Escola de Artes que Freda Jardim planejava construir em sua residência, antes de seu falecimento.

Céu de brigadeiro: Esta é uma expressão que surgiu na década de 1950, e que significa um céu sem nuvens no horizonte.

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