“Escolhi ‘ver’ meu filho na luz, e não na escuridão”

Íris Chaim, mãe de YotamArquivo pessoal

Íris Chaim, mãe de um dos três reféns israelenses mortos por soldados israelenses em dezembro de 2023, é hoje a principal porta-voz pela defesa da união interna e pelo apoio incondicional ao Exército de Israel.

Íris e Yotam, alguns anos atrásKAN 11

Em 15 dezembro de 2023, Íris Chaim recebeu a notícia da morte de seu filho Yotam, que havia sido sequestrado pelo grupo terrorista Hamas no dia 7 de outubro de 2023. A tragédia não se encerrava ali: ele foi um dos três reféns mortos pelo Exército de Israel após terem sido confundidos com terroristas. Em lugar de render-se ao inconformismo, Íris tomou o destino em suas mãos – ao saber que os soldados que participaram desse evento declararam que perderam a legitimidade para continuar lutando, ela os convidou à sua casa para chorarem juntos o incidente trágico. 

Enfermeira especializada em cuidados paliativos, ela teve que esperar por 2,5 semanas para receber as primeiras notícias sobre o destino de Yotam, que vivia em uma das comunidades agrícolas do sul do país mais duramente atacadas por ondas sucessivas de terroristas do Hamas, o kibbutz Kfar Aza. A notícia da morte de Yotam por fogo amigo veio dois meses depois de seu sequestro. Essa é sua história.

Pôster em homenagem à equipe interna de resgate do kibbutz Kfar Aza assassinada durante a invasão do HamasReprodução

O que aconteceu com Yotam no dia 7 de outubro?

Temos três filhos e todos nós vivemos no sul de Israel. Yotam morava sozinho e era músico, baterista de heavy metal. Era esportista, era engraçado, e também sofria de vários distúrbios de saúde. Na noite de 7 de outubro, ele se apresentaria em Tel Aviv. Yotam começou a escrever sobre o ataque no nosso grupo familiar no WhatsApp bem cedo naquela manhã. Ele ficou abrigado em seu quarto de segurança, certo de que conseguiria fazer o show mais tarde, e estava muito irritado pelo fato de o Hamas escolher justamente aquele dia para atacar. 

[A população no sul de Israel estava acostumada aos frequentes mísseis lançados a partir da Faixa de Gaza e, assim, para muitos a sensação de apreensão era menor do que a de raiva.]

Os terroristas chegaram à vizinhança dele – uma área habitada só pelos jovens – por volta das 10h da manhã. Às 10h48, ele escreveu que os terroristas estavam atirando muito e incendiando casas. Haviam cortado os tubos de gás delas e Yotam começou a se sentir asfixiado. Ele entendeu que não sobreviveria se permanecesse ali e, às 10h49, nos escreveu dizendo que decidiu sair pela janela, que ficava a cerca de três metros de altura. Em sua última mensagem, ele disse: “Vou sair e tenho certeza de que vão atirar em mim”.

Cartaz exigindo a libertação de Yotam, refém do Hamas por 9 semanas

Cartaz exigindo a libertação de Yotam, refém do Hamas por 9 semanasReprodução

O que aconteceu em seguida?

Durante 2,5 semanas, não tivemos nenhuma notícia a seu respeito. Só sabíamos que todos daquela vizinhança foram mortos ou sequestrados. Como mãe, rezei para que ele tivesse sido sequestrado – afinal, isso significaria que talvez estivesse vivo. Recebemos o filme registrado por uma câmera de segurança do kibbutz que mostra como ele, às 10h58, foi capturado. É possível vê-lo caminhando com estabilidade, com a cabeça erguida. É impossível não reconhecê-lo por causa de seus cabelos, muito ruivos. Vi que ele não estava ferido e parecia muito forte. Eu tinha certeza de que ele sobreviveria. 

Vocês tiveram outras informações sobre ele?

Sim, mas somente cerca de 60 dias depois do sequestro, quando houve a troca de reféns entre Israel e Hamas. Recebemos informações de um trabalhador tailandês que foi libertado na troca de reféns. Ele havia trabalhado apenas cinco dias em Israel antes da invasão e esteve com Yotam durante 53 dias junto com outros dois sequestrados, Alon Shamriz e Samer Talalka, um beduíno que vivia em uma comunidade no deserto do Neguev. A palavra “juntos”, aqui, é de grande importância. Eles foram mantidos em túneis, ao contrário do que eu tentava visualizar o tempo inteiro: eu sempre repetia que preferia “vê-lo” na luz e não na escuridão. Eles permaneceram 42 dias em um túnel e depois foram levados para outro, com piores condições. Mas eu não queria ouvir sobre isso – queria saber qual era o seu estado de espírito, e Yotam estava forte. O tailandês contou que ele ficava batucando no chão enquanto os outros três cantavam. Eles estavam fortes por estarem juntos. Fiquei muito esperançosa e tinha certeza de que nosso Exército os traria de volta. Fui entrevistada incontáveis vezes em todos os canais de comunicação dentro e fora de Israel. Eu sempre repetia que acreditava na força dele.

Yotam com os outros dois reféns israelenses mortos acidentalmente pelo Exército de IsraelReprodução

Como você reagiu à notícia sobre a morte de Yotam por fogo amigo?

Cerca de 70 dias depois do 7.10, apesar de todas as minhas esperanças, recebemos a pior notícia possível: oficiais do Exército vieram à nossa casa para nos dizer que ele havia sido confundido e morto por soldados do Exército israelense. Era o dia 15 de dezembro, o último da festa judaica de Chanucá, em que celebramos milagres acontecidos ao povo judeu há mais de dois milênios. Foi um choque, obviamente. Como esperar por algo assim? Ele era ruivo, tinha tatuagens e a pele muito clara, como a minha. Como ele poderia ter sido confundido com um terrorista? Estávamos celebrando milagres e era isso o que eu esperava, um milagre. O choque foi tão grande que todos entraram em desespero – por “todos” quero dizer o país inteiro, especialmente o Exército. Muitos soldados começaram a dizer que não poderiam continuar lutando pois não tinham legitimidade para tanto depois de tamanho erro. Alguém me contou isso durante a shivá [o período de sete dias de luto mantidos por judeus pela morte de um familiar direto]: soldados e oficiais sentiam que não poderiam continuar lutando. Eu fiquei surpresa: como assim? Todos nós precisamos deles! Nessa hora, deixei de lado meu papel de mãe e assumi o de cidadã.

Reportagem sobre Íris Chaim

Como assim?

Enviei imediatamente para os soldados envolvidos no evento uma mensagem, dizendo que nossa família queria abraçá-los, que nós os amamos e que sabemos que não eram eles os culpados pelo ocorrido, mas o Hamas. E os convidei para vir à nossa casa. Não podíamos julgá-los, pois não fazíamos ideia da situação em que estavam naquele momento. Conclui dizendo que estávamos muito tristes pela perda do Yotam, mas não bravos com eles. Há algo que o mundo externo não sabe: os soldados são nossos filhos. Eles são o exército e o exército somos nós. Não é um exército profissional, contratado – são nossas crianças. Poderia ter sido também o meu filho mais velho a lutar e cometer um erro assim. Eu me sinto também como mãe destes soldados.

Eles vieram à sua casa?

Sim, e nós nos abraçamos, choramos juntos e eu repeti tudo o que havia dito na mensagem. Perguntei apenas uma coisa: como eles não perceberam que o Yotam não era um terrorista com aquela cabeleira ruiva? Eles então contaram que seus cabelos foram raspados. Hoje nós sabemos muitos outros fatos sobre a fuga dele do cativeiro e dos outros dois reféns. Eles conseguiram escapar após um bombardeio e ninguém consegue imaginar como sobreviveram em Gaza durante cinco dias. Para mim, é fundamental saber que durante esse tempo eles estiveram ao ar livre, respirando fora do ar viciado dos túneis, e que, por exemplo, puderam ir ao banheiro quando quisessem e não quando alguém permitia. Eles encontraram um pouco de comida e ficaram escondidos. É um conforto saber que ele terminou sua história como um homem livre. Yotam foi um heroi, e é assim que eu descrevo o que aconteceu com ele e também com todos nós: dia após dia, eu escolho vê-lo como um homem que atuou e lutou, apesar de estar em uma situação terrível de cativeiro por 65 dias. Ele conseguiu escapar, conseguiu lutar por seu destino, conseguiu resistir à realidade. A história não terminou como queríamos, o que não muda esse fato.

Nenhum soldado percebeu que ele poderia ser um dos reféns israelenses?

Depois soubemos que sim, um soldado percebeu. Yotam foi o último a ser morto: após atirarem nos dois outros reféns, ele conseguiu fugir e se esconder. Alguém gritou pedindo que parassem de atirar, mas um dos soldados não ouviu. Mas veja: não queremos que as pessoas lembrem de Yotam como o refém que foi morto por engano. Queremos que seja lembrado por sua bravura, das horas que resistiu em sua casa e dos mais de dois meses em que ele foi tão forte, tão poderoso, tão companheiro e leal. É assim que queremos vê-los e também por isso decidimos não falar publicamente sobre o Exército.

Qual a sua opinião sobre a guerra?

Sabemos que houve algum problema com nosso Exército no dia 7.10. Mas também acredito que lutamos pelos motivos certos, ou seja, não por vingança, mas para que possamos viver como está descrito no hino nacional de Israel: como um povo livre em nossa própria nação. Isso é tudo. E esse pensamento vai comigo o tempo inteiro, mesmo depois da morte de meu filho. Enfrentamos uma guerra existencial e Yotam é um de seus herois.

Como você consegue manter-se tão positiva?

Sou naturalmente otimista e, quando você nasce assim, não consegue mudar. Mas tenho motivos para tanto, afinal permanecemos juntos como povo ao longo de todo esse ano terrível. Mesmo as demonstrações nas ruas que acontecem em Israel não me incomodam, porque sei que quem participa o faz por bons motivos. Todos querem que Israel exista e permaneça forte. E, de fato, provamos a nós mesmos o quão corajosos somos. Eu tenho certeza de que, a partir da tragédia de 7.10, nos tornaremos um país melhor. Temos a chance de novamente aprender quem nós somos, mesmo que seja por meio das dificuldades e do trauma. Isso é algo novo, não havia aqui antes. É tão bonito ver como passamos por essas transformações em meio a uma guerra tão terrível. E o Yotam, eu sei, continua conosco, ele me guia em minha vida. Falo muito sobre nosso poder de escolher, a cada dia, a realidade em que viveremos. Ela é, aqui, muito difícil – mas ainda assim podemos escolher a forma como a encaramos.

Como o restante de sua família reagiu à morte de Yotam?

Cada um teve sua trajetória. Eu tenho muitas ferramentas por causa do meu trabalho, faço meditação há muitos anos, sou muito otimista. Mas meu filho mais velho, Tuval, disse imediatamente após o desaparecimento de Yotam: “Ele está morto e precisamos encontrar um lugar para enterrá-lo”. Meu marido teve a mesma reação. Mais tarde, Tuval, que também é músico, regravou uma música em homenagem a Yotam chamada Asas do Espírito, escrita por um rabino que morreu há 90 anos. São palavras muito poderosas sobre a habilidade de todos nós de encontrarmos nossos próprios poderes. Essa é a forma que Tuval encontrou para lidar com esse assunto. Ele teve muita raiva, ficou muito deprimido, mas hoje está melhor. Voltou para a música, a qual lhe fornece muito suporte. 

Vídeo gravado por Tuval em homenagem a Yotam, que aparece no final do clipe 

Minha filha Noya tem 22 anos, é artista, e tem sua própria forma de pensar. Não é fácil para nenhum de nós, mas somos muito pró-ativos. Depois da morte de Yotam, criamos uma ONG para atender pessoas que lidam com problemas mentais como as que meu filho enfrentava, e lançamos mão dos mesmos instrumentos que Yotam usava: música, esporte – ele praticava Cross Fit –, animais e suporte familiar. Queremos construir uma sede. Temos muitas ideias e isso nos ajuda. Yotam sofria de depressão, ansiedade e anorexia, o que o impediu de fazer o serviço militar. Ele também tinha pós-trauma e transtorno obsessivo-compulsivo. Convivia também com a espondilite anquilosante, uma doença autoimune que provoca muitas dores. Para controlá-la, ele tomava uma injeção por mês. Quando ele foi sequestrado, havia recebido um dose poucos dias antes. Eu acreditava que ele já teria sido libertado para tomar a próxima e, quando entendi que isso não aconteceria, fiquei muito preocupada. No entanto, eu mentalizava o tempo inteiro que, no momento em que as dores começassem, ele receberia medicamento. As pessoas me perguntaram como eu podia acreditar nisso: o Hamas vai dar remédios aos reféns? E, de fato, o tailandês libertado nos contou que ele recebeu drogas para a dor nas costas. Não tenho como explicar isso. 

Você tem críticas ao governo de Israel?

Eu nunca votei no Benjamin Netanyahu em seu partido, o Likud. Considero-me de centro esquerda. Certamente não o escolherei no futuro. Não falo contra o governo, o que não significa que estou a seu favor. Em Israel, críticas são bem-vindas e assim somos: aqui, você sempre precisa ser contra alguma coisa. 

Qual a sua posição em relação aos esforços do governo para a libertação dos 101 reféns que ainda estão sob o poder do Hamas?

Acredito que devemos fazer tudo o que for possível para trazê-los de volta. No entanto, não acho que haja alguém do outro lado que queira negociar conosco. Se os palestinos querem Jerusalém, que nosso governo a entregue. Se quiserem o final da guerra, o controle total de Gaza ou o que quer que seja – defendo que tudo deva ser concedido, porque os reféns precisam voltar para suas casas. Israel é muito forte e não importa nossas concessões, sempre poderemos solucionar os problemas futuros. Creio que não será bom para o país se os reféns não voltarem. Por outro lado, não acredito que Yahya Sinwar, o líder do Hamas, queira realmente negociar qualquer coisa. Creio que, no caso de um cessar-fogo, a negociação pela libertação dos sequestrados se estenderá por anos e anos. 

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