De Urussanga para o mundo: Aldo Baldin, um tenor que conquistou todas as plateias

Quando Aldo Baldin morreu de infarto, em 1994, a notícia foi recebida com pesar, porque o tenor tinha apenas 49 anos, e com uma reação imediata e ostensiva de incredulidade por quem o conhecia – pouquíssima gente no Brasil e em Santa Catarina, sua terra natal.

Descendente de imigrantes italianos que se fixaram no interior de Urussanga, bem perto dos contrafortes da Serra Geral, ele tinha corpo franzino, nenhum talento para o futebol e para as brincadeiras dos meninos de seu tempo.

Tenor conquistou plateias mundo afora

Desde que descobriu o potencial para o canto lírico, Aldo Baldindecidiu dedicar-se à música. Ele não perseguiu o sucesso nospalcos, mas ele o encontrou e o projetou mundo afora – Foto: Divulgação/ND

Num seminário em Passo Fundo (RS), descobriu o potencial de sua voz para o canto lírico, e aí começou uma carreira para a qual todos os louvores são superlativos.

Maestros, músicos, compositores e críticos de todas as latitudes se renderam à genialidade desse artista que fez da disciplina o trampolim para o reconhecimento mundial.

Outro filho de Urussanga que desconhecia a história do tenor, o cineasta Yves Goulart acabou se tornando mais um difusor da obra de Aldo Baldin por acaso, quando morava e produzia filmes em Nova York, em 2009.

Imagem surpresa

Ele fazia uma exibição privada do documentário “Além da luz”, sobre a rotina de cegos que tentam levar uma vida normal e produtiva, quando uma amiga com doutorado em música clássica, Stella Brandão, lhe mostrou o disco de vinil “Bachianas e Serenatas”, de Villa-Lobos, de onde ele poderia tirar uma faixa para seu filme.

Para surpresa de Goulart, a capa do disco trazia uma imagem da igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Urussanga, e a informação de que a gravação era com a voz de Aldo Baldin, tenor nascido nessa cidade catarinense.

Ali, após o impacto inicial da descoberta, começou uma maratona de 14 anos, entre pesquisas, entrevistas, filmagens, busca de patrocínios, paralisações, avanços e recuos – até que o documentário “Aldo Baldin – Uma Vida pela Música” ficasse pronto, estreasse no 24º Havana Film Festival New York e chegasse ao Brasil, onde foi exibido em São Paulo e Recife e levou o prêmio do júri popular no último FAM (Florianópolis Audiovisual do Mercosul).

Nesse tempo todo, Yves Goulart contou com a ajuda da viúva do cantor, a musicista Irene Flesch Baldin, de suas duas filhas (as três moram na Alemanha, onde o tenor residia e trabalhava quando morreu) e de dezenas de músicos e maestros que admiram Baldin.

Nos créditos do documentário aparecem, entre outros, os nomes de Isaac Karabtchevsky, Sir Neville Marriner, Maria Lúcia Godoy, Edino Krieger, Roberto de Regina, Heloísa Vergara e o ilhéu Darcy Brasiliano dos Santos, criador da PróMúsica de Florianópolis, morto em 2021.

Personagem deixou gravação contando a sua história

A música erudita em geral, e os cantores líricos em particular, costumam ser pouco conhecidos do grande público, mas Baldin deixou legado de mais de 100 discos, cantando obras de Bach, Mozart e Beethoven – algumas delas bem populares.

“A particularidade de Baldin é que ele migrava de um estilo para outro com maestria, ao contrário de muitos cantores que investem toda a carreira num só gênero”, diz o cineasta Yves Goulart.

“Além disso, ele se preparou para fazer o que queria, o que deixo claro no subtítulo ‘Uma Vida pela Música’. Tocava violoncelo muito bem, lia partituras, deu aulas e superou as próprias limitações com disciplina e muitos anos de estudos”, frisa.

Em sua carreira, Baldin foi professor catedrático na Escola de Música de Karlsruhe, na Alemanha, e ministrou master classes em Israel e em países da Europa, Ásia e América Latina.

Sem ter a estatura corporal dos grandes tenores, compensava a compleição física que o incomodava com uma técnica refinada que impressionou a Europa e o mundo durante quase três décadas.

Se não tinha corpo para fazer papéis nas grandes óperas, se reinventou. “Deu vida aos repertórios de Bach, aos oratórios e cantatas, e experimentou o bufo, o cômico, que também se adequam ao tenor”, diz Goulart.

As performances inesquecíveis do cantor estão registradase imortalizadas no amplo acervo que ele deixou – Foto: Divulgação/ND

O diretor conta que fez um documentário operístico, como se fosse uma sequência de atos da vida e da carreira do tenor, e mostrou da sua origem humilde numa região agrícola até o sucesso que alcançou nas mais celebradas salas de concertos do planeta.

A história é contada em primeira pessoa, a partir de uma fita gravada por Baldin dois dias de morrer, e pelo depoimento de músicos, amigos e familiares. Ele parecia prever o que viria, mesmo acreditando que ainda iria produzir a própria autobiografia.

“Estou gravando esta fita para poder escrever um livro sobre Aldo Baldin, um tenor brasileiro”, disse, falando de si próprio.

Uma maratona de 14 anos para viabilizar o documentário

Daria quase outro filme a epopeia do cineasta Yves Goulart, contando o tempo da descoberta do disco “Bachianas e Serenatas”, em Nova York, com peças cantadas por Baldin, até a conclusão do filme sobre o tenor e sua estreia e exibição em festivais.

Em 2010, o diretor ganhou direito a um recurso do Edital Catarinense de Cinema (da Fundação Catarinense de Cultura) para fazer uma pesquisa sobre o músico e percebeu que precisava correr para apanhar com vida muitos amigos, professores e maestros que poderiam falar sobre ele – todos perto da faixa dos 70 anos.

Em Urussanga, quem acompanhou o início da carreira de Baldin lembra da sua voz poderosa – Foto: Divulgação/ND

Foi à luta com câmera, luz e todos os equipamentos, e durante quatro anos colheu os depoimentos que conseguiu. Obteve o consentimento da viúva e foi atrás de patrocínios, leis de incentivo à cultura e apoio da Ancine (Agência Nacional de Cinema).

Depois de 14 anos de muita resiliência, pouco dinheiro e uso de recursos próprios, ele concluiu o filme este ano e, além de Nova York, o exibiu em três cidades brasileiras. Neste domingo (13), será a vez de Curitiba, e depois a agenda inclui Goiânia, Porto Alegre, Campinas (SP) e Porto Seguro (BA).

Yves Goulart é tão urussanguense quanto Aldo Baldin. Foi vendedor de discos em sua cidade (sem nunca ter topado com um vinil ou CD do tenor), e lembra que “apenas a elite local sabia da existência dele”.

Os jovens de sua geração não estavam nessa cota. “Na década de 1980 fizeram um grande concerto em Urussanga, com jantar e homenagens, mas eu era criança e não tinha noção da importância do cantor”, conta.

Morando nos Estados Unidos, ele ficou sabendo que em 2005 começou um resgate desse vínculo do artista com a cidade, por meio de um festival que levou o seu nome, que coincidiu com uma festa do vinho, um dos principais produtos da região.

O cineasta Yves Goulart com a viúva do cantor lírico, IreneFlesch Baldin, que mora com as duas filhas na Alemanha – Foto: Divulgação/ND

O diretor ressalta o “encantamento” das pessoas que viram o filme no festival em Nova York e anuncia para o ano que vem sua chegada às salas de cinema.

Será uma oportunidade de difundir a carreira do tenor que ganhou um Grammy em 1981 pelo disco “A criação” de Haydn e foi indicado ao mesmo prêmio pela gravação de “Bodas de Figaro”, de Mozart, em 1986.

Yves tem outras produções, entre elas o citado “Além da luz”, um filme sobre Machado de Assis e o documentário “Ouro negro”, sobre um acidente que provocou a morte de 31 mineiros em Urussanga.

Soprano foi premiada a partir de orientação de Baldin

A soprano Rute Gebler, grande referência da música erudita catarinense, fala de Aldo Baldin com emoção e diz que no filme de Yves Goulart, que assistiu durante o FAM, ainda aprendeu com o grande tenor, vendo-o cantar missas e réquiens.

Ela lembra de um episódio antigo, quando se preparava para participar de um concurso nacional de canto no Estado de Goiás, ocasião em que, na casa de Darcy Brasiliano dos Santos, presidente da Pró-Música de Florianópolis, “ele ensinou a interpretação que eu devia dar ao trecho de ópera escolhida para concorrer”.

Duro como professor, o ensinamento daquele dia rendeu o prêmio para a soprano, que também foi hóspede do tenor em Karlsruhe, onde ela apresentou um repertório de músicas brasileiras de vários gêneros, incluindo composições de raiz africana pouco conhecidas pelos alemães.

Baldin (centro) em apresentação com Edith Mathis eDietrich Fischer-Dieskau em cena do documentário – Foto: Divulgação/ND

“Aldo Baldin era obstinado, tinha uma grande disciplina e foi para a Alemanha sem dominar a língua – aprendeu o idioma germânico cantando”, diz Rute Gebler. Assim, chegou muito longe, e teria ido além se não morresse tão jovem.

Para quem chegou a não ter onde dormir, diz a soprano, foi uma carreira espetacular. Ela aparece cantando em “Aldo Baldin – Uma Vida pela Música”, filme para o qual só tem um adjetivo: “Maravilhoso”.

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